terça-feira, 3 de março de 2009

Comitiva do Céu do Cerrado no Fórum Social Mundial-Belém PA 2009

FSM 2009 – Uma Saga Espiritual ou O Outro Mundo Possível visto por uma daimista.
Lila Lindoso

A comitiva de Palmas saiu às 3 da manhã do dia 27 de janeiro: Bruna, Andréa, Daniel, Lila e Alex, um irmão de Chapadão do Céu-GO, que pegou uma carona depois que o carro no qual saiu rumo à Belém quebrou (e ficou) no meio do caminho. Apertados entre a lotação do carro e o bagageiro entulhado até o teto, forrando lençóis, toalhas e mantas nos bancos e encostos para ganhar espaço, vimos o sol nascer na Belém-Brasília. Os hinos nos acompanhavam na jornada, enquanto acelerávamos para evitar pegar a noite nas estradas perigosas do Pará. Por volta das 19:30 chegamos à chácara do Céu de Belém, onde já estavam Ricardo e Rafael, que haviam ido dias antes levando as famosas folhas de Rainha do Céu do Cerrado para o feitio que abasteceria os trabalhos da semana. Enquanto a irmandade local cuidava dos preparativos para o trabalho de São Miguel, armamos as barracas que seriam nosso abrigo naquela noite, tomamos um bom banho e sacamos das mochilas a farda amassada que seria nossa companheira inseparável durante aquela semana. O cansaço fazia a miração virar uma enorme estrada, que se descortinava acelerada frente aos olhos, longa e ensolarada. Teve até irmão que não agüentou e, na força do Santo Daime, se retirou para o quartinho das crianças, embora dormir mesmo fosse impossível. Levado para a mesa pelas mãos do seu Chico Corrente, no entanto, Daniel bem representou a comitiva que, embora cansada, muito aprendeu das palavras e atitudes dos comandantes do trabalho.
Na manhã do dia seguinte, partimos rumo a Belém, onde ficamos hospedados na casa do irmão João Figueiredo, que com muito calor e alegria nos recebeu ao longo da semana. Chegamos à tarde no nosso primeiro dia de Fórum, mas o cansaço e o excesso de atividades, bem como a dificuldade de encontrar os locais naquele universo desconhecido às margens do Rio Guamá que era a UFPA nos fez circular meio que apenas em reconhecimento da área. Por sorte, consegui encontrar o local onde acontecia uma palestra sobre a expansão da doutrina do Santo Daime, com a presença de Fernando Ribeiro e seu Chico Corrente, representando o pessoal do Padrinho Sebastião, e mais dois representantes do Alto Santo. Ao final do evento, no local de encontro combinado pela comitiva do Céu do Cerrado, tivemos a alegria de encontrar também o recém-chegado Sr. Daniel Serra, sobrinho do Mestre Irineu, a quem conheci naquele momento e calorosamente fui aceita na minha proposta de visitá-lo o mais breve possível em São Luis. Outros encontros interessantes também se deram, como com Alexandre, um cineasta e videomaker, atualmente residente em Imperatriz, que dirigiu o filme “O Senhor da Floresta”, sobre a vida do Mestre Irineu. Foi um encontro interessante do ponto de vista da doutrina e também profissional, pois ele conhece meus colegas de trabalho de Imperatriz com quem compartilho a gestão da Reserva Extrativista do Extremo Norte do Tocantins – e surgiu daí o reforço de uma possível parceria para este trabalho. Na palestra ainda encontramos o irmão Hermógenes, que havia ido alguns dias antes num dos ônibus que levaram as comitivas dos movimentos sociais do Tocantins.
Esses encontros do povo do Daime acabaram tornando-se a tônica do Fórum Social Mundial, e ao final percebemos que, embora ele não houvesse sido nada do esperado, acabou sendo muito melhor... Dia 29 foi o grande dia do Fórum para os que estavam imbuídos desse espírito. Dia do trabalho “demonstrativo” do Santo Daime dentro da programação do evento. Final da tarde, às margens do rio Guamá, um calor daqueles que só a Amazônia tem, uma multidão de gente se aproximando, vestidos de todo jeito, vindos de todas as partes, com as mais diferentes compreensões sobre essa “viagem” espiritual, e pra completar, um palco armado bem ao lado da tenda, que, por sinal, era aberta... Salão arrumado, fardados a caráter, Sacramento no ponto, faixa isolante ao redor da tenda, que no entanto não impedia a visão dos curiosos, batalhões de fiscais a postos, Fernando Ribeiro, dirigente dos trabalhos da semana e patrono do Céu de Belém, dava as instruções: noções básicas da doutrina, concessões feitas neste trabalho específico em relação a vestimentas e outras normas do ritual, orientações sobre permanência no local, solicitação de retirar-se aqueles que não pretendiam tomar o Daime etc etc. Tudo apontava para a grande batalha que enfrentaríamos. Já no primeiro despacho, a Força chegou e junto com ela o pensamento: meu Deus, segurai-nos! Sentados, cantamos a Nova Era, do Padrinho Alfredo, e era possível perceber em muitos rostos ali presentes o êxtase, o mal-estar, a alegria, a miração... Do lado de fora, o movimento: quem estava fora queria entrar, quem estava dentro queria sair. Uns queriam se jogar na água, outros só queriam ir embora, e a multidão se aglomerava, tirava fotos e também, com certeza, muitos compreendiam o que diziam os ensinos.
Chega a imprensa. Nova concessão. O povo mirava, viajava, e os fotógrafos, no anseio de confirmar seu pensamento já consolidado sobre a “polêmica bebida”, tônica das matérias dos jornais locais, invadiam o espaço íntimo do auto-conhecimento dos participantes daquela tumultuada sessão. Começa o show no palco ao lado. Até alguns fardados pensaram em correr. Segundo despacho do Santo Daime, retiram-se as cadeiras do salão. Aí pensei: agora com o bailado o negócio desanda de vez. Alguns participantes pediram para ir embora, pois não esperavam um trabalho tão longo. Os acordes iniciais introduziram os ensinos do Mestre contidos no Cruzeirinho – que brilhante harmonia! Nem um só passo trocado, nada que interferisse na corrente. Alguns riam, outros olhavam as mulheres, outros avançavam o espaço feminino, mas aos poucos, pelas mãos dos fiscais e comandantes, tudo foi se assentando. Até o show de carimbó, importante manifestação cultural paraense, deu uma paradinha. Sentíamos o gostinho da vitória do Mestre, e uma força nova, como uma firmeza fortalecida, se instalava no sorriso de todos que batalharam para vivenciar este momento. Depoimentos emocionados ao final do trabalho davam conta de parte do que havia se passado ali. Fernando Ribeiro afirmava a certeza do grande trabalho que havia tomado lugar naquele momento, e a graduação de todos os fardados que até ali batalharam...
Na concentração do dia 30, já na chácara do Céu de Belém, recebemos a visita de alguns dos participantes da noite anterior, e isso, mais os sorrisos abertos de todos os que participaram da batalha espiritual no Fórum, demonstravam as grandes coisas que o Daime havia operado nessa ousada empreitada. Para a turma do Cerrado, o reencontro com o irmão Tércio aumentou essa alegria, que chegou junto com a comitiva do Piauí para os últimos trabalhos da semana. O batalhão masculino do Céu do Cerrado enfrentava ainda outra dura batalha, de cuidar de um irmão necessitado com todo amor e dedicação. Não foram dias fáceis... Mas o melhor ainda estava por vir.
Sábado só conseguimos participar do Fórum à tarde. Decidimos dar uma volta pela UFRA, outro local onde estavam acontecendo as atividades do Fórum. E só aí descobrimos, no último dia de Fórum para nós, que naquele local é que acontecia o verdadeiro Fórum Social Mundial. Todas as tribos, deste lado e do outro do planeta, saíam em marchas, passeatas de protesto, um reggae aqui, outro ali e mais além, acampamento da juventude, Aldeia da Paz, artistas passando um som para os shows de logo mais, indígenas e artesão de diversas cepas expondo suas artes, em cada esquina uma parada, uma atração, uma janela para o mundo. Um pouco mais satisfeitos com o que seria o Fórum Social Mundial, voltamos na mesma noite para a chácara do Céu de Belém, pois a partir das 8 da manhã do dia seguinte começava o trabalho de Mata em comemoração ao dia de Iemanjá. Como a chácara já ficava na saída para Palmas, seguimos com toda a bagagem, pois partiríamos na segunda cedinho.
Depois do café da manhã, seguimos para o terreiro, que ficava logo depois da Casa de Feitio. Aí fizemos a primeira parte do trabalho, cantando o hinário da Madrinha Rita, que representou, neste trabalho, os guias principais da Doutrina, Mestre Irineu e Padrinho Sebastião. Ao final desta primeira parte, Fernando Ribeiro trouxe as orientações espirituais que certamente abriram e guiaram os trabalhos de cada presente, assegurando-nos de que se tratava ali de um trabalho não de peia, mas de receber – algo grande estava para ser entregue naquele trabalho a todo merecedor. Senti em meu coração que me encontrava neste ponto, embora com certo receio de que mais do que merecedora, era uma necessitada dessa “abertura de caminhos”. Lembranças, saudades também marcaram esse momento, com a presença forte de nossa irmã Renatinha, cuja emoção nossa e dela tentamos minimizar cantando seu hino, na última parte do trabalho.
Encerrado este primeiro momento, seguimos para o segundo terreiro, levando cadeiras e todo o material necessário para a realização do trabalho. O caminho era longo e, ainda por cima, subida. Na força do Daime, limpeza feita, toda a Mata reluzia. Aí já acomodados, a chuva avisou que a força das águas vinha se manifestar. Rapidamente seguimos todos de volta para a Casa de Feitio, uns levando cadeiras, outros seus filhos, e alguns – como eu – tombos, hilários porém instantâneos e sem maiores conseqüências. Chuva que redime os pecados, descarrega os pesos, limpa a visão, abre os canais, dando espaço para que o novo, o inesperado, o prometido, o guardado, o inaceitado, o que tem de ser se inicie... Depois dos hinos de Santa Maria, louvamos Mamãe Iemanjá. E seguimos para a Igreja para a última parte do trabalho, ao entardecer.
Aí cantamos e bailamos o hinário do Fernando e ao final, vários irmãos apresentaram alguns hinos. O Daime seguia ensinando e as limpezas continuavam operando. Trabalho encerrado e a longa estrada da vida se descortinava renovada, porém ainda árdua – principalmente para quem tinha a missão de encarar 1.200km de volta para casa num carro lotado, cuidando de um irmão necessitado, para no dia seguinte retomar a rotina. Levantamos às 4h da manhã, arrumamos as mochilas no bagageiro e saímos para tomar café da manhã na estrada. Viemos em trabalho de cura, com a proteção dos 20 litros de Daime que trouxemos do feitio realizado para o Fórum – diga-se de passagem, um chá de muita miração, pelo que muito nos agradeceram todos os representantes da Igreja irmã. No Tocantins, a estrada muito ruim somou-se à chuva, e acabamos estourando dois pneus de uma só vez. Já anoitecia, e ainda pegamos um desvio grande antes de chegar a Miracema. Por fim, entramos em Palmas pouco antes das 11 da noite, seguindo direto para a casa de Daniela e Gustavo, inconscientemente ou não um pedido de proteção, de bênção da chegada. Uma tristeza profunda confundia-se com uma alegria divina – cada uma em seu lugar e na sua hora devida – demonstrando com as transformações em nossas vidas que já não éramos mais os mesmos que foram para Belém. Viva essa Santa Doutrina que diz e prova, mostra e realiza, jogando ao chão qualquer sombra de dúvida ou medo que porventura insista em persistir! Com a certeza de que nesse “outro mundo possível”, com o qual sonha o FSM, a espiritualidade é a essência, demos passos importantes para que cada um dos que acompanharam essa maratona espiritual ficassem um pouco mais preparados para este tempo que já está chegando. O Mestre entregou, vamos receber...

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